A Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019, popularmente conhecida como “Pacote Anticrime” introduziu uma série de mudanças controversas na legislação penal, processual penal e de execução penal no país. Este pequeno estudo busca convidar o leitor a refletir sobre uma dessas mudanças: o novo art. 91-A do Código Penal.
Trata-se de dispositivo que, em resumidas linhas introdutórias, amplia as possibilidades de confisco de bens, como produto e proveito do crime, em desfavor de indivíduos condenados por crimes cujas penas máximas sejam superiores a 6 (seis) anos de reclusão, passando a afetar também os “bens correspondentes à diferença entre o valor do patrimônio do condenado e aquele que seja compatível com o seu rendimento lícito”.
Ademais, o §1º regula as hipóteses em que se deve entender por “patrimônio do condenado”, ampliando a constelação de bens que podem ser denotados pela expressão citada. O inciso I determina que são todos os bens de titularidade do condenado “ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício direto ou indireto, na data da infração penal ou recebidos posteriormente”, enquanto o inciso II inclui também aqueles bens “transferidos a terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, a partir do início da atividade criminal”.
As próximas linhas têm como foco os três excertos citados ipsis litteris nesta pequena introdução.
1. Nemo tenetur se detegere?
Conforme dito, o caput do art. 91-A, CP determina que, agora, para os indivíduos condenados pelo cometimento de delito cuja pena máxima seja superior a 6 (seis) anos de reclusão, é possível declarar a perda, como produto ou proveito do crime, daqueles bens que sejam incompatíveis com o rendimento lícito do condenado.
O primeiro ponto que merece destaque é que o dispositivo não especifica quais seriam os critérios para a definição de rendimento lícito, deixando a cargo (i) do Ministério Público, no momento da denúncia, indicar a diferença apurada (§3º) e (ii) do Magistrado, no momento da sentença condenatória, declarar o valor da diferença e especificar os bens que constituirão o objeto da perda (§4º).
Ademais, o dispositivo faculta ao condenado a possibilidade de demonstração de que não há a incompatibilidade apontada, bem como indicar a procedência lícita do seu patrimônio (§2º).
Um passo aparentemente possível seria a verificação da declaração do imposto de renda do condenado. Dessa forma, se algum bem se demonstrar incompatível com os ganhos declarados no imposto de renda, estaria este sujeito à declaração de perda como proveito ou produto do crime.
Aqui, é necessária uma análise muito detalhada acerca dos ganhos do condenado ao longo da sua vida, na medida em que são muitas as possibilidades de adquirir a propriedade de um bem: salário, lucros e dividendos, doação, herança etc.
Um indivíduo pode, ainda, fazer economias ao longo da vida, manter o dinheiro aplicado por anos (até décadas), de modo que, aqui, uma verdadeira investigação acerca da vida financeira do condenado seria necessária. Não é uma conta simples de realizar e talvez seja esse o motivo para o legislador ter silenciado.
Entretanto, um fator parece ter sido ignorado: o ordenamento jurídico brasileiro recepciona o princípio jurídico nemo tenetur se detegere, a garantia de não autoincriminação [1] e, segundo vejo, há o risco de desrespeito a essa garantia pelo menos nos casos que envolvam crimes tributários.
Sobre isso, convido o leitor a analisar a seguinte hipótese: um indivíduo, condenado por um tipo penal cuja pena máxima supera o marco de seis anos, obtivera uma remuneração pela regular prestação de um serviço X, sem apresentar nota fiscal nem indicar o rendimento na declaração de imposto de renda, praticando, dessa forma, o delito do art. 1º, I e V da Lei 8.137/90.
O rendimento é, portanto, lícito per se, sendo ilícita somente a sua não declaração à autoridade fazendária e a não emissão de nota fiscal. Todavia, para demonstrar a licitude da origem do rendimento e não ter a perda declarada em seu desfavor, o condenado teria que produzir prova contra si mesmo, violando, assim, o nemo tenetur.
Dessa forma, o primeiro questionamento quanto à legitimidade do novo art. 91-A, CP tem como objeto o princípio da não autoincriminação. Isso porque, neste exemplo, o condenado fica obrigado a escolher entre não produzir prova contra si mesmo, sofrendo a perda de patrimônio lícito ou ter que produzir prova contra si mesmo para manter preservado seu patrimônio.
Aqui, o fato de ter praticado o crime contra a ordem tributária não torna legítima a declaração de perda de patrimônio lícito a título de proveito ou produto do crime. Ter como únicas opções possíveis a perda de patrimônio lícito ou a produção de prova contra si mesmo não parece ser uma situação adequada a um cidadão em um Estado de Direito.
Aqui, uma possível alternativa seria declarar a nulidade, para fins de persecução penal futura do crime de sonegação, de todas as provas apresentadas pelo próprio condenado, bem como aquelas que decorram dessas provas.
Essa solução, todavia, também não estaria imune a críticas: na medida em que o indivíduo se tornaria um alvo, seria difícil determinar, no caso de descoberta da sonegação por vias aparentemente independentes, se essa descoberta realmente deu-se independentemente ou se a atuação dos órgãos de persecução ou fiscalização fora provocada pela autoincriminação.
Uma possível réplica a críticas dessa natureza seria que até hoje não está bem definida a exata extensão da garantia à não autoincriminação e suas consequências [2], de modo que não se sabe verdadeiramente se o nemo tenetur tem realmente o condão de proibir uma autoridade pública de buscar provas após tomar ciência de um fato criminoso em decorrência da autoincriminação.
Como este pequeno artigo não é o espaço adequado para uma reflexão do tamanho que o assunto demandaria, é mais prudente optar aqui pela via mais conservadora de sugerir a aplicação do princípio somente naquelas áreas fora de controvérsia.
Assim, a alternativa mais viável neste momento parece ser, de fato, a de considerar a nulidade das provas provenientes da autoincriminação, bem como daquelas que dela sejam diretamente derivadas, nos termos da teoria dos frutos da árvore envenenada.
Isso porque se é justamente o Estado que exerce a coação que provoca a autoincriminação no âmbito do processo penal, parece incontroverso que a obtenção de elementos por meio da autoincriminação ocorre de forma ilegal e, portanto, é nula [3].
Não vejo como possível uma réplica no sentido de negar a ilegalidade da obtenção da prova, pois o art. 91-A, CP não tem como ratio forçar uma autoincriminação e, ainda se tivesse, dificilmente teria validade, pois a proibição de coação para a autoincriminação, contida no Pacto de San José da Costa Rica, tem, segundo entendimento firmando no STF [4], status supralegal e, portanto, está acima de dispositivos de lei federal numa hierarquia de normas.
2. O art. 91-A, §1º, CP
A alternativa acima ensaiada de verificação do imposto de renda não seria, todavia, suficiente para verificar o patrimônio do condenado, principalmente devido ao fato de o §1º do art. 91-A ampliar o significado do conceito de “patrimônio do condenado”, contido no caput do dispositivo.
Aqui, parece claro o intuito de combater o êxito do emprego dos famigerados laranjas, para, assim, alcançar aquele patrimônio que, de fato, é propriedade do condenado, mas que formalmente está sob titularidade de terceiros. Entretanto, a nobre intenção do legislador não é razão suficiente para legitimar qualquer dispositivo aprovado.
In casu, o grau de generalidade das redações dos incisos do §1º extrapola aquelas constelações de casos onde é possível verificar a existência de laranjas. Por exemplo, um ser humano pode comportar inúmeros atos aparentemente contraditórios, de modo que, por exemplo, nada impede que um indivíduo extremamente corrupto tenha também algo de generoso.
Dessa forma, quando o inciso II fala em bens “transferidos a terceiros a título gratuito”, abarca não só as fraudes praticadas por meio de laranjas, mas também as doações legítimas. Mesmo que 99,9% dos casos que surgirem sejam, de fato, fraudulentos, basta a possibilidade de que em 0,1% haja injustiça para restringir a incidência de um dispositivo de modo a prevenir essa indesejada possibilidade.
O inciso I também não está livre de controvérsias. Aqui, a redação do dispositivo não representa um mero risco de violação do direito de propriedade, mas de violação do direito de propriedade de um inocente.
Para facilitar a visualização, convido novamente o leitor à análise de uma hipótese: o indivíduo condenado por um crime cuja pena máxima supera o marco de seis anos mora, a título gratuito, no imóvel do irmão, tendo o domínio do bem por meio de escritura pública (art. 167 da lei 6.015/73).
Aqui, parece no mínimo possível que essa situação se amolde à redação do inciso I, que fala de bens “em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício direto ou indireto”. Parece evidente que o legislador não pensara nesse tipo de caso ao redigir o art. 91-A, §1º, I, CP, mas é fato que a forma como o artigo foi redigido torna a sua incidência possível.
Que o condenado tinha o “domínio” sobre o imóvel do irmão inocente, bem como beneficiava-se diretamente desse imóvel, é incontroverso. Dessa forma, o irmão do condenado, que é o verdadeiro e legítimo proprietário do imóvel, teria o seu direito posto em risco pela possibilidade de declaração de perda do bem como produto ou proveito do crime praticado por outrem.
Considerando-se o fato já visto de que o caput do art. 91-A, CP pode, realmente, atingir bens de origem lícita, estão ainda mais abertas as portas para o alcance inadequado de bens de propriedade de terceiros inocentes.
Todavia, a Carta Magna reconhece a existência do direito de propriedade (art. 5º, XXII, CRFB/88), de modo que há, aqui, uma questão de importância constitucional a ser dirimida. E que a punição de um inocente é algo frontalmente contrário à ideia de Estado de Direito, é algo que atualmente aparenta não necessitar de uma longa exposição [5].
Uma possível réplica seria no sentido de que o art. 91-A, CP não trata de uma punição, mas meramente de um efeito da condenação criminal [6]. Entretanto, a esse argumento cabe uma tréplica no sentido que não só a condenação, mas também seus efeitos não podem passar da pessoa do condenado, isto é, não podem afetar os direitos subjetivos de um terceiro inocente (art. 5º, XLV da CRFB)[7].
Ademais, até mesmo nos casos de responsabilidade objetiva civil o sujeito precisa ter de alguma forma causado o dano (art. 927, p. ú, CC) [8]. Ademais, ser a afetação de um direito tachada ou não como punição não muda o fato de que essa medida deve ser justificada perante o indivíduo afetado, sobretudo em um Estado de Direito guiado pela noção de dignidade humana (art. 1º, III, CRFB/88) e que, por isso, orienta-se pela ideia de individualismo normativo [9].
Nesses casos, não vislumbro como possível uma justificação dessa ordem. Assim, a via aparentemente mais viável é a de uma interpretação restritiva, de modo a limitar a incidência desses dispositivos de modo a não cair num dos problemas aqui apontados.
3. Identificando o problema do art. 91-A, §1º, CP
O grande problema da redação do §1º é que ela tenta o impossível: definir meios fraudulentos sem ao menos fazer menção a meios fraudulentos. Ambos os incisos tentam descrever certos estados de coisas em que há a possibilidade ou probabilidade de uma operação fraudulenta de modo a blindar o patrimônio do condenado. Todavia, esses incisos limitam-se a indicar meros indícios da possibilidade de emprego de meios fraudulentos, mas não exigem a ocorrência de fraude.
Quanto ao inciso II, a diferença conceitual entre uma doação legítima e uma doação fraudulenta é somente uma: o emprego do meio fraudulento. Como um ato objetivo puro, uma transferência de uma propriedade a título gratuito será sempre e somente uma simples transferência de propriedade a título gratuito.
Dessa forma, a mera descrição de atos por meio de indícios de possibilidade de fraude não é capaz de elucidar a differentia specifica entre uma doação legítima e uma doação fraudulenta.
O mesmo se dá em relação ao inciso I: não está devidamente clara a diferença entre a fraude e o usufruto legítimo de bens de terceiros. Para resolver o problema dos dois incisos, bastaria que o legislador se inspirasse em qualquer tipo penal que ocorra mediante fraude e descrevesse que aqueles estados de coisas deveriam ocorrer mediante fraude, com o fim de simular a real titularidade do patrimônio [10].
4. A origem do problema: inversão do ônus da prova
Ao que parece, a origem do problema é que o artigo inverte o ônus da prova: o condenado é que deverá comprovar que o bem em questão tem origem lícita. Ademais, no caso do §1º, cabe ao condenado ou ao terceiro proprietário do bem demonstrar que se trata de um bem de origem lícita.
O grande problema é que esse movimento contraria o princípio da presunção de inocência e talvez dê ensejo a casos de prova diabólica. Quanto à prova diabólica, não é difícil imaginar situações onde seria inviável demonstrar a ausência de ilicitude de um estado de coisas.
Por isso, a regra correta é justamente a contrária: toda operação deveria ser lícita até que haja elementos que indiquem o contrário. Quanto a isso, seria possível argumentar que o descompasso entre o patrimônio real e os ganhos lícitos do agente já é um indício suficiente a justificar essa inversão de ônus da prova.
Todavia, apesar de isso parecer prima facie razoável quando se lê somente o caput do dispositivo, a situação é justamente outra com a leitura do seu parágrafo 1º, que tem como condão a ampliação do que se deve entender como patrimônio do condenado.
Se o descompasso entre o patrimônio do condenado e os seus ganhos lícitos consistir somente em bens em nome de terceiros, esse descompasso não pode ser considerado um indício suficiente para uma inversão do ônus da prova. Isso porque seria no mínimo necessário um indício de que o bem é de titularidade formal de um terceiro com o preciso fim de ocultar a sua real titularidade.
E, conforme já aduzido no item anterior, os incisos do parágrafo 1º não descrevem suficientemente uma situação dessas. E, assim, repito: a titularidade do bem em nome de terceiro deve ser considerada lícita até que haja elementos que indiquem o contrário.
No que tange à presunção de inocência, outra possível réplica seria no sentido de que uma pessoa já condenada já não teria mais a presunção de inocência a seu favor.
Todavia, duas hipotéticas tréplicas são possíveis: a uma, o fato de uma pessoa ter sido condenada por um crime X não leva necessariamente à conclusão de que ela é culpada também por realizar alguma fraude, tampouco indicia isto; a duas, aqui, a presunção de inocência não tem a ver somente com o indivíduo condenado, mas com o terceiro que é o proprietário de direito sobre o bem em questão.
E, quando o terceiro não tem nenhuma relação com os fatos apurados, o problema agrava-se ainda mais, pois aqui, mais do que em qualquer outro lugar, a presunção de inocência mostra-se ainda mais razoável.
Por que uma pessoa completamente alheia a um processo penal deveria ser provocada a comprovar a licitude de um bem de sua propriedade? Aqui, no mínimo, deveria ser necessário ao menos verificar fundadas razões para desconfiar do emprego de meios fraudulentos.
Dessa forma, é possível justificar a inversão do ônus da prova somente nos casos em que o objeto do descompasso entre patrimônio real e ganhos lícitos do agente consista em bens de propriedade formal do próprio condenado. Nos casos de suspeita de uso de laranjas, deveria haver algum elemento que indicasse que realmente há o emprego da fraude para, assim, justificar alguma inversão do ônus da prova.
Conclusão
Direitos subjetivos – dentre eles, o de propriedade – não estão sob a total disposição do soberano e existem independentemente dos poderes deste. Cabe aos três poderes – sobretudo o Judiciário – o reconhecimento e respeito aos direitos subjetivos que existem independentemente de um detentor de poder declará-los no papel frio da lei positiva [11].
Dessa forma, fato é que, independentemente do que dispôs o Poder Legislativo no Projeto Anticrime, o Estado não pode tudo, sobretudo quando a ameaça é violar os direitos de um inocente.
Aqui, duas alternativas são possíveis: a interpretação restritiva do dispositivo, de modo a preservar o direito de propriedade ou a declaração de inconstitucionalidade do dispositivo, por contrariar valores constitucionais como o citado direito de propriedade, bem como a presunção de inocência e o nemo tenetur.
A primeira opção é preferível, pois preserva o núcleo duro daquilo que os representantes do povo pretendiam alcançar com a aprovação da medida, cabendo à Jurisprudência preservar os valores constitucionais por meio de uma interpretação restritiva.
[1] Artigo 8º, II, alínea “g”, do Pacto de São José da Costa Rica c/c art. 5º, §2º, CRFB/88. Em decorrência desse princípio, o art. 186, CPP reconhece o direito de o acusado permanecer em silêncio e seu parágrafo único estabelece que o silêncio não pode ser considerado como confissão, não podendo ser interpretado em prejuízo da defesa.
[2] Nesse sentido, GRECO, Luís; CARACAS, Christian. Internal investigations e o princípio da não auto-incriminação. Trad. Orlandino Gleizer e Mario Helton Jorge Jr. In: LOBATO, José Danilo; MARTINELLI, João Paulo Orsini; SANTOS, Humberto Souza (orgs.). Comentários ao Direito Penal Econômico Brasileiro. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017, p. 800-807.
[3] Não irei, neste pequeno artigo, enfrentar os problemas das exceções à nulidade da prova e da exigência do art. 563, CPP de demonstração de prejuízo decorrente da nulidade, conhecido pelo brocardo pas de nullité sans grief.
[4] Aqui, há um debate sobre o correto status do Pacto, tendo o STF firmado entendimento de que possui status normativo supralegal (cf., por exemplo, RE 466.343, rel. min. Cezar Peluso; HC 95.967, rel. min. Ellen Gracie; ADI 5.240, rel. min. Luiz Fux), havendo aqueles que sustentam que o Pacto possui status constitucional.
[5] “Ainda que a paz social e a existência da sociedade, o bem estar e a vida de vários indivíduos esteja em jogo, não parece correto sacrificar os direitos da inocência, o principal dos quais é o de nunca sofrer uma punição”. GRECO, Luís. A ilha de Kant. In: GRECO, Luís; MARTINS, Antonio (orgs.). Direito penal como crítica da pena: estudos em homenagem a Juarez Tavares por seu 70º aniversário em 2 de setembro de 2012. São Paulo: Marcial Pons, 2012, p. 263-279.
[6] Cf. ASSADO, Tiago Cintra. A perda de bens e o novo paradigma para o processo penal brasileiro. Tese de Doutorado USP, 2014, p. 18-24, que faz um panorama do debate sobre a natureza jurídica do confisco e posiciona-se no sentido de este ser somente um efeito da condenação e não uma pena.
[7] Aqui é importante a ressalva de que o dispositivo constitucional citado permite que a obrigação de reparar o dano ou a decretação do perdimento de bens sejam estendidas aos sucessores do condenado, “nos termos da lei”. Assim, essa argumentação tem limitações no caso em que o terceiro inocente é sucessor do condenado. Todavia, parece que o texto constitucional ainda precisa justificar em que medida é possível afetar o patrimônio do sucessor inocente. O mero fato de ter um ascendente condenado criminalmente ainda não é razão suficiente a justificar ao próprio afetado a afetação de seu patrimônio. Um movimento desses parece ser possível de justificação, por exemplo, em casos de antecipação de legítima, isto é, quando o ascendente doa patrimônio a um descendente herdeiro. Aqui, a intervenção no patrimônio objeto da antecipação parece prima facie razoável.
[8] “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.
[9] “De maneira mais precisa, a tese central do individualismo normativo pode ser assim formulada: “Todas as decisões políticas e jurídicas possuem a sua justificação última exclusivamente em um tipo específico de referência aos indivíduos, i.e., seres humanos afetados pela respectiva decisão – deixando-se, por ora, outras formas de vida fora da análise”. Dessa forma, os indivíduos não só limitam o domínio político. Muito mais, todo domínio só pode ser legitimado por meio da referência final aos seres humanos afetados e deve possuir exclusivamente estes como fim último.”. PFORDTEN, Dietmar von Der. Individualismo normativo e o Direito. Trad. Saulo Monteiro de Matos. Revista Direito Público, Brasília, v. 11, n. 60, p. 172-197, 2014.
[10] Veja-se o exemplo do estelionato: “Art. 171 – Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”. Aqui, o legislador não teve muito trabalho para redigir um tipo penal que cumpre a sua função: exigir a violação de patrimônio alheio em razão de vício de vontade provocado por um meio fraudulento.
[11] “Direitos subjetivos não são, assim, os resultados de benesses com as quais o soberano agracia os seus subordinados. Eles não são criados originariamente pelo Estado, senão que são conceitualmente preexistentes e juridicamente reconhecidos. Direitos subjetivos não são, igualmente, apenas resultados de ponderações orientadas ao bem comum. Antes do que isso, pertence à essência do direito subjetivo a inauguração de um espaço de conformação autorresponsável da vida aos indivíduos, livre de exigências por parte da sociedade”. RENZIKOWSKI, Joachim. Teoria das normas e dogmática jurídico-penal. Trad. Alaor Leite. In: LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano; ASSIS, Augusto (orgs.). Direito penal e teoria das normas: estudos críticos sobre as teorias do bem jurídico, da imputação objetiva e do domínio do fato. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2017, p. 32.