Em 18 de setembro do corrente ano, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados (CCJ) aprovou, por 31 votos a 4, a Proposta de Emenda à Constituição 100 de 2019 (PEC 100/2019), para introduzir no rol de direitos fundamentais do art. 5º da Constituição (CRFB/88) o direito à legítima defesa1.
Como resultado, votou-se para elaborar parecer favorável à inclusão de um inciso LXXIX ao citado dispositivo constitucional, de forma a admitir o “direito ao exercício da legítima defesa e os meios a tanto necessários”, mas a inadmitir a expressão “e o direito de possuir e portar os meios necessários para a garantia da inviolabilidade dos direitos previstos no caput”2. Uma semana depois, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), órgão vinculado ao Ministério Público Federal, emitiu a Nota Técnica nº 16/2019/PFDC/MPF, manifestando-se desfavoravelmente à PEC 100/20193.
Dentre outras coisas, a PFDC argumenta que “se o uso da força legítima é monopólio do Estado, certamente, por razões lógicas, a ‘autodefesa’ não pode ser um direito”, doravante assertiva 1. Além disso, destaca que o termo “responsabilidade de todos”, contido no art. 144, CRFB/88, “é uma expressão exatamente do princípio da solidariedade. Todos se reconhecem entre si como sujeitos de igual direito e consideração, afastando o recurso à violência como possibilidade relacional”, doravante assertiva 2.
Pretendo enfrentar esses argumentos com a questão que se encontra no título: existe um direito de legítima defesa?
Defendo que a resposta deve ser positiva e as razões para tanto serão melhor expostas ao longo do texto e giram em torno de dois argumentos principais: (i) não há contradição lógica entre o direito de defesa e o “monopólio” da força estatal, desde que este seja interpretado de forma correta e (ii) o direito de autodefesa é uma consequência lógica do próprio conceito de direito subjetivo.
1. O “monopólio” estatal do uso da força
A primeira questão que aqui se impõe é o enfrentamento de um pressuposto que é ignorado pela nota técnica da PFDC: na realidade, o Estado não detém um monopólio absoluto sobre o uso da força legítima no ordenamento jurídico brasileiro. Vou além: nem poderia tê-lo, se se pretende um poder justificado, e não uma mera “quadrilha de ladrões”4, mas isso é algo a ser disposto em momento posterior (cf. infra, 2 e 3). O art. 144, CRFB/88 somente aduz que a segurança pública é dever do Estado, sendo “exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”, mas adiciona que ela também é “direito e responsabilidade de todos”.
Ademais, se a Carta Política tivesse estabelecido um tal monopólio ao Estado, teria disposto expressamente, tendo em vista que esse mesmo termo (monopólio) é expressamente utilizado no art. 177 da Carta Magna, para determinar as áreas de monopólio da União na ordem econômica. Não há, portanto, comando normativo-constitucional capaz de excluir um direito à legítima defesa com base em um monopólio absoluto do uso da força.
O que o Estado detém, na realidade, é o monopólio da legitimidade para exercer certos tipos de atividade relacionadas ao Poder Judiciário e à segurança pública, mas que tem como ratio o antigo princípio segundo o qual ninguém pode ser Juiz em causa própria5. Ademais, há um grave erro conceitual na assertiva 2 da nota técnica da PFDC, na medida em que o termo violência é empregado de forma equivocada e provoca confusões.
A partir do momento em que todos se reconhecem como sujeitos de igual direito, pode surgir uma obrigação de não agressão, termo que possui um significado distinto de violência. Agredir significa atacar, isto é, invadir uma esfera de liberdade alheia. Por outro lado, defender-se significa a busca da preservação da própria esfera de liberdade. Tanto para agredir, quanto para defender, é possível (e em alguns casos necessário) o recurso à violência, de modo que este termo não pode, de nenhuma forma, ser usado para inferir uma contradição entre a isonomia ou solidariedade e o direito de defesa.
De qualquer forma, a assertiva 2 é problemática até para o emprego do termo agressão. Via de regra, o que o Estado parece possuir é uma certa autorização à agressão legítima em âmbitos em que os particulares não possuem. Por exemplo, uma prisão, tanto como pena, quanto como medida cautelar, é uma forma de agressão, na medida em que ela, apesar de ser uma reação a um comportamento humano anterior, não se destina ao afastamento imediato de uma invasão à esfera de liberdade de alguém e, nesse sentido, não é uma simples defesa. Aqui, somente o Estado pode submeter indivíduos à pena privativa de liberdade ou a prisões cautelares.
Todavia, o Estado autoriza os particulares a usarem de força agressiva para prender alguém em flagrante, nos termos do art. 301 do Código de Processo Penal (CPP), que aduz: “qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito”. Veja-se que a força necessária para prender quem se encontra em flagrante delito converte-se, em algum momento, de força defensiva para força agressiva e o CPP autoriza qualquer do povo a empregar esse tipo de força. A não ser que se queira declarar a inconstitucionalidade do art. 301, CPP, a assertiva 2 da PFDC deve ser revisada.
Além disso, os artigos 23 e 24 do Código Penal (CP) disciplinam o instituto do estado de necessidade, que, em muitas hipóteses, também será exercido mediante o emprego de força agressiva. Pareceria absurdo sequer vislumbrar a hipótese de considerar inconstitucional o referido diploma.
Portanto, tem-se, até o momento, o seguinte panorama: não há contradição entre a isonomia, solidariedade, os direitos subjetivos e o direito de defesa. Ademais, já há hipóteses em que o ordenamento jurídico autoriza o uso de força agressiva sem que se possa inferir uma inconstitucionalidade nos dispositivos legais que o fazem. Todavia, é possível ajustar a proposição da PFDC para os seguintes termos: todos se reconhecem entre si como sujeitos de igual direito e consideração, afastando o direito à agressão como possibilidade relacional.
Dessa forma, ninguém possui prima facie um direito subjetivo à agressão. O que ocorre é que o ordenamento jurídico, em certas hipóteses e mediante a necessidade de justificação, autoriza (em geral, para os particulares) ou ordena (em geral, para agentes públicos) o uso de força agressiva. A autorização para, em situações pontuais, utilizar força agressiva não equivale a um direito a agredir. Não dissertarei sobre os requisitos para o uso legítimo de força agressiva pois o assunto extrapola os limites deste texto.
2. O conceito de direito subjetivo
Independentemente do conceito de direito subjetivo a ser adotado, parece incontroverso que se trata de uma definição relacional entre um sujeito e um bem do mundo da vida. Em Kant, por exemplo, o direito subjetivo é esse conceito relacional onde algo é objeto do arbítrio do seu titular, sendo o direito objetivo justamente “o conjunto de condições sob as quais o arbítrio de um pode ser reunido com o arbítrio do outro segundo uma lei universal da liberdade”6. Dessa forma, a definição kantiana de direito tem como base os direitos subjetivos: o direito tem como função precípua a harmonização das esferas de liberdade individuais.
De fato, existem diversas teorias sobre o direito subjetivo, mas todas gravitam em torno da ideia geral do conceito de direito como interesse ou vontade sobre alguma coisa7. Como consequência disso, conforme aduz Kelsen, a existência de um direito pressupõe um dever correspondente de terceiros de respeito, o que significa que há um certo vínculo entre direito e obrigação8.
E isso por uma questão lógica: se eu tenho um direito à vida, isso pressupõe que eu tenho um direito de exigir que os demais não ataquem a minha vida. Portanto, como aponta Renzikowski, a ideia de direito subjetivo pressupõe uma relação tríplice entre um sujeito de direito, um contexto fático, e outro sujeito de direito9, onde ambos os sujeitos de direito são, ao mesmo tempo, portadores de direitos e de deveres de respeitar o direito alheio.
Recapitulando: o direito subjetivo é um espaço juridicamente protegido, onde o seu titular pode agir conforme bem entender e que pode, por outro lado, exigir legitimamente que os demais não perturbem a sua livre ação com relação ao objeto do seu direito. À primeira das dimensões, denomina-se função de gozo e diz respeito ao sujeito de direito e ao contexto fático em questão, enquanto que a segunda das dimensões é denominada função de exclusão e diz respeito aos sujeitos de direito10.
Essas duas dimensões do direito subjetivo é que permitem dizer que uma coisa é de alguém. Se eu sou dono de um smartphone, eu posso legitimamente utilizá-lo para fazer ligações, usar aplicativos de mensagens, redes sociais, acessar a minha conta bancária, pedir comida, posso ainda doar ou vender o aparelho. Essa gama de possibilidades está contida na função de gozo do meu direito subjetivo à propriedade do meu smartphone.
Por outro lado, eu também posso exigir que os outros respeitem o meu uso legítimo sobre o aparelho, de modo que, se alguém tenta subtrair o aparelho de mim mediante violência ou grave ameaça (art. 157, CP), eu posso legitimamente usar dos meios necessários para afastar o ataque11. Em outras palavras, eu posso agir em legítima defesa, nos termos do art. 25, CP. A legítima defesa, portanto, está incluída na função de exclusão de todo direito subjetivo existente.
Somente quando a função de gozo e a função de exclusão estão combinadas é possível dizer que alguém possui um direito a algum bem. Dessa forma, o direito à legítima defesa não é um direito qualquer, mas é um elemento necessário de qualquer direito subjetivo. E essa constatação terá repercussões fundamentais para o debate acerca da PEC 100/2019, que serão elencados abaixo.
Antes disso, veja-se, finalmente, que a legítima defesa, sendo um elemento necessário de todo direito subjetivo, já está logicamente pressuposta a cada momento em que o Estado reconhece um direito subjetivo.
Se todo indivíduo detém o direito à vida (art. 5º, caput, CRFB/88), possui também o direito a defender a própria vida; se detém o direito à propriedade (art. 5º, caput e XXII, CRFB/88), possui também o direito a defender a própria propriedade, e assim por diante. Dessa forma, a assertiva 1 da PFDC é contraditória, pois afirma que uma dimensão da função de exclusão de todos os direitos subjetivos não é um direito.
3. A legítima defesa deve ser expressamente reconhecida na Constituição?
A primeira e mais óbvia conclusão do acima exposto é que não há somente um direito à legítima defesa, mas este já está pressuposto em todos os direitos subjetivos. Dessa forma, por uma questão lógica, a PEC 100/2019 mostra-se, a uma primeira vista, supérflua e redundante, na medida em que reconhece algo que já integra todos os outros direitos já reconhecidos.
Além disso, ela pode estar incorrendo em um equívoco lógico, na medida em que aparenta tornar o conceito circular: se todo direito pressupõe uma função de exclusão, afirmar um direito autônomo de defender-se exigiria afirmar a função de exclusão do direito de defender-se, isto é, a possibilidade de defender a faculdade de defender-se. Por outro lado, talvez seja possível arguir que a necessidade de incluir expressamente o direito de defesa na Constituição tenha o condão de impedir que o legislador ordinário tente violar o direito à defesa por meio de uma lei federal.
Por outro lado, esse argumento ainda não refuta a questão da superfluidade do inciso, pois, repito: a legítima defesa já é um valor constitucional, pois está logicamente inserida em todos os direitos subjetivos elencados na Carta Magna. Dessa forma, é possível que a PEC 100/2019 cause confusões, na medida em que pode gerar nas pessoas a falsa noção de que ainda não há um direito constitucional à legítima defesa.
Todavia, é possível arguir que todo direito subjetivo declarado constitucionalmente é per se circular, pois a Constituição somente declara algo logicamente anterior, isto é, que já existe12. Na medida em que os direitos subjetivos contidos na Carta Política não são um mero favor concedido pelo Estado aos cidadãos, mas são verdadeiros imperativos éticos que todo Estado que se pretenda justificado deve reconhecer, é inegável que a Carta Magna nada cria, mas somente reconhece13.
Assim, a Constituição declara um direito logicamente preexistente, ao mesmo tempo que, ao fazê-lo, garante efetividade jurídica daquele direito no seu ordenamento jurídico e, por isso, o movimento é de certa forma circular. Destarte, todo valor declarado constitucionalmente deve ser aquilo que se considera conditio sine qua non de um Estado orientado à proteção das liberdades humanas, de modo que na Carta Política deve estar aquilo que se julga necessário proteger juridicamente.
E, tendo em vista os equívocos da nota técnica emitida pela PFDC, principalmente na assertiva 1, aparentemente é preciso proteger a legítima defesa como um elemento necessário para um Estado orientado à proteção das liberdades. De todo modo, optando-se pela inclusão expressa da legítima defesa na Constituição, ao menos seria mais preciso fazê-lo nos seguintes termos: “todo direito subjetivo pressupõe a possibilidade de defendê-lo, bem como os meios a tanto necessários”. Em suma: se é preciso garantir o respeito à legítima defesa como elemento de todos os direitos subjetivos, que assim seja. Caso contrário, o que diferenciaria o Estado de uma quadrilha de ladrões?
Essa perspectiva está em conformidade com o individualismo normativo, isto é, a concepção geral segundo a qual o poder público deve ser capaz de justificar-se perante os cidadãos, em especial àqueles afetados pela medida concretamente considerada14.
Ademais, não sendo os direitos subjetivos meras dádivas concedidas pelo detentor do poder político, e, não sendo esses direitos absolutos, ocorre aqui uma inversão do ônus de justificação: agora é o Estado que deve justificar a restrição de direitos e estes não precisam ser justificados para serem reconhecidos. É por isso, por exemplo, que a restrição de direitos só ocorre mediante lei (art. 5º, II, CRFB/88), conforme o devido processo legal (art. 5º, LIV, CRFB/88) e que medidas como a desapropriação só podem ser realizadas pelo Poder Público mediante devida justificação e com justa e prévia indenização em dinheiro (art. 5º, XXIV, CRFB/88)15.
Limitar a legítima defesa é, da mesma forma, uma restrição a um direito e significa que o indivíduo teria uma obrigação jurídica de tolerar um sacrifício ao seu direito16, o que só poderia ocorrer mediante uma forte argumentação1718.
Conclusão
Pelas razões acima aduzidas, a nota técnica da PFDC equivoca-se ao asseverar a inexistência de um direito subjetivo à legítima defesa, na medida em que este é um elemento necessário de todo direito subjetivo.
Por outro lado, a PEC 100/2019 é imprecisa, pois reconhece o direito de legítima defesa como se este autônomo fosse, de modo que é preciso ajustar a sua redação. Para tanto, repito o texto acima proposto: “todo direito subjetivo pressupõe a possibilidade de defendê-lo, bem como os meios a tanto necessários”.
Ademais, a concepção fundamental segundo a qual todo direito subjetivo existe independentemente da vontade do soberano possui a vantagem de respeitar o indivíduo como um fim em si mesmo, além de inverter o ônus de argumentação: é o poder que deve justificar a restrição de direitos.
Com isso, a Carta Magna não cria direitos, mas os reconhece. Somente dessa forma é que um Estado pode diferenciar-se de uma quadrilha de ladrões.
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1 Cf. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2209764
2 Cf. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=3B3BB52DD41DA4DB5515DCB29FC0A91D.proposicoesWebExterno2?codteor=1813525&filename=Parecer-Aprovacao-CCJC-18-09-2019
3 Cf. http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/notas-tecnicas/nota-tecnica-16-2019-pfdc-mpf
4 Expressão cunhada por Santo Agostinho e repetida por Greco em GRECO, Luís. Lo vivo y lo muerto en la teoría de la pena de Feuerbach: una contribución al debate actual sobre los fundamentos del Derecho penal. Trad. Paola Dropulich e José R. Béguelin. Madri: Marcial Pons, 2015, p. 114 e ss.
5 Essa ideia pode ser verificada, por exemplo, em LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. Trad. Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 398; BURKE, Edmund. Reflexões sobre a revolução em França. Trad. Renato de Assumpção Faria, Denis Fontes de Souza Pinto e Carmen Lidia Richter Ribeiro Moura. Brasília: Universidade de Brasília, 1982, p. 89.
6 KANT, Immanuel. Princípios metafísicos da doutrina do direito. Trad. Joãosinho Beckenkamp. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 34.
7 Sobre as diferentes teorias, cf. KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. Trad. Luís Carlos Borges. 3ª ed. São Paulo, Martins Fontes, 1998, p. 111-122.
8 Ibidem, p. 108.
9 RENZIKOWSKI, Joachim. Teoria das normas e dogmática jurídico-penal. Trad. Alaor Leite. In: LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano; ASSIS, Augusto (orgs.). Direito penal e teoria das normas: estudos críticos sobre as teorias do bem jurídico, da imputação objetiva e do domínio do fato. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2017, p. 35.
10 Ibidem, loc. cit.
11 “O direito de legítima defesa, nesse ponto, não é nada mais que o direito a uma esfera jurídica íntegra e o oposto do dever do agressor de não desrespeitar a integridade da esfera jurídica alheia” (tradução livre). GRECO, Luís. Notwehr und Proportionalität. Goltdammer’s Archiv für Strafrecht, Heidelberg, ano 2018, n. 12, p. 676.
12 Devo esse argumento a uma conversa que tive com Igor Damous, que ponderou a questão da circularidade de todo direito fundamental reconhecido pela Constituição.
13 “Direitos subjetivos não são, assim, os resultados de benesses com as quais o soberano agracia os seus subordinados. Eles não são criados originariamente pelo Estado, senão que são conceitualmente preexistentes e juridicamente reconhecidos. Direitos subjetivos não são, igualmente, apenas resultados de ponderações orientadas ao bem comum. Antes do que isso, pertence à essência do direito subjetivo a inauguração de um espaço de conformação autorresponsável da vida aos indivíduos, livre de exigências por parte da sociedade”. RENZIKOWSKI, Joachim. Op. cit., p. 32.
14 “Muito mais, todo domínio só pode ser legitimado por meio da referência final aos seres humanos afetados e deve possuir exclusivamente estes como fim último”. PFORDTEN, Dietmar von der. Individualismo normativo e o direito. Trad. Saulo Monteiro de Matos. Revista Direito Público, Brasília, n. 60, 2014, p. 173.
15 Em razão da possibilidade de desapropriação, fala-se em uma garantia do valor da propriedade como compensação a essa relativização da função de gozo ao direito subjetivo à propriedade. Cf. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 422.
16 Nesse sentido, GRECO, Luís. Notwehr, op. cit., p. 678.
17 Exemplificativamente, veja-se a disciplina contida no art. 1.210 do Código Civil, cujo §1º determina que o possuidor turbado ou esbulhado “poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo”, que a doutrina dominante considera um exercício regular de direito (por exemplo, BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 22ª ed. São Paulo: Saraiva, p. 434), mas que, na realidade, é uma limitação do direito de legítima defesa da propriedade, na medida em que introduz uma limitação temporal ao uso de força defensiva.
18 Provavelmente, essa justificação deverá ter como base a possibilidade de aguardar pela prestação estatal para a resolução da questão, pois, conforme assevera Burke, “cada um dos membros da sociedade renunciou ao primeiro direito fundamental do indivíduo isolado, isto é, o de julgar por si mesmo e o de defender sua própria causa. Abdicou do direito de governar-se a si próprio. Abandonou, inclusive, em grande medida, o direito à autodefesa, primeira lei da natureza. O homem não pode gozar ao mesmo tempo dos direitos da sociedade civil e dos que teria se vivesse isolado. A fim de obter justiça, desiste do direito de determinar quais de seus pontos se lhe configuram os mais essenciais. A fim de assegurar alguma liberdade, entrega-a inteira em confiança à sociedade”. BURKE, Edmund. Op. cit., loc. cit. Com isso, de fato, o direito à legítima defesa parece intocável somente na medida em que for necessário e, ao mesmo tempo, o Estado nada possa fazer para impedir aquele intolerável prejuízo ao detentor do direito subjetivo. Nos demais âmbitos, como é o caso citado na nota anterior, a atividade defensiva ao menos aparenta ser suscetível de limitações.